Há alguns anos me ocupo de pensar a mãe enquanto identidade, observando de que maneira as dinâmicas históricas ressignificam a maternidade e a experiência de pessoas que podem gestar, parir e cuidar de um ser humano. De tempos em tempos a maternidade se vê envolta em disputas políticas, econômicas e sociais e sua construção ultrapassa em muito as singularidades das vivências individuais.
Pensar a maternidade enquanto categoria me faz sair do meu universo particular e olhar para essa figura da “mãe” como um construto histórico. Não importa aqui a mãe que eu tive ou a mãe que eu sou, mas os modelos desse ser mãe que nos impõem desde sempre. Figura central do patriarcado e da força reprodutiva, a mãe carrega o mundo nas costas por amor e por instinto, doando-se abnegadamente na criação de uma prole que irá povoar o mundo e fazê-lo progredir.
Crescei e multiplicai-vos, nossa sina da maternidade compulsória se fez no legado cristão do pecado de Eva à virgindade de Maria, as dores do parto tornando o dar à luz o ápice da vida de uma mulher, seu destino absoluto, sua função social.
A luta pelo fim da família nuclear, por novos arranjos afetivos que ultrapassem vínculos sanguíneos, pela inclusão de todas as pessoas com útero nos debates sobre o cuidado de crianças, pelos direitos sexuais e reprodutivos, pelo aborto, pelo fim da violência sexual, doméstica e de gênero, pela equidade passam por desmistificar o lugar ocupado pela mãe.
Minha mãe veio da geração que lutou pelo direito ao estudo e ao trabalho, mas não abriu mão do casamento e da maternidade. Mães mal resolvidas, violentas, perversas, ausentes, a maternidade possível de mulheres que não tiveram acesso a terapia, ao auto conhecimento e a própria voz foi uma maternidade bem ruim, como a da minha avó e das outras mulheres antes dela.
Minha maternidade veio junto com o furacão da globalização, da internet, dos novos feminismos, das possibilidades de escolha, mesmo com o aborto ainda criminalizado e com muitas amigas e parentes tendo filhes porque era isso o que se esperava delas. Eu fui mãe porque quis, me sinto confortável na minha maternidade possível, mas acompanho a loucura que virou esse novo lugar da mãe nos dias de hoje.
O parto humanizado, a maternidade ativa e positiva, uma régua imensa para medir o quanto você é uma boa mãe, desde os lanchinhos para a escola até o quanto sua cria é incrível, perfeita, boa aluna, educada, sabe-se lá mais o quê. As redes sociais transformaram a maternidade em uma neurose, uma competição na qual a maioria perde. Se trabalha fora está errada, se tem babá está errada, se parou de trabalhar está errada, se grita está errada, se não grita é permissiva. Não há escapatória.
Deveríamos estar lutando por creche e escola de qualidade, por espaços de lazer e cultura seguros e acessíveis, por lavanderias públicas, redução da jornada de trabalho, ampliação dos vínculos familiares para fins de previdência e seguro, planos de saúde com ampla cobertura, direitos sexuais e reprodutivos para toda a população cis e trans que gesta. A tal da aldeia de que tanto falam, mas que na prática não existe e nem está na pauta para ser construída.
Deveríamos estar desconstruindo os modelos falidos de maternidade, de família, de casamento, de educação. Mas não, o individualismo neoliberal venceu em todas as frentes e agora não temos mais mãe de pet ou mãe de planta, temos mãe de bebê de plástico. Ou o child free, a violência suprema de permitir discurso de ódio contra um grupo volnerável como o das crianças. Enquanto isso parlamentares perseguem as pessoas LBTQIAPN+, impedem o acesso ao aborto legal, inclusive de crianças e adolescentes, esfacelam os resquícios do Estado laico e centralizam as políticas públicas na família, no lar, no cuidado.
O retrocesso caminha a passos largos e neste momento pouco me importa que mulheres cis que têm condições financeiras para exercer a maternidade o façam com cachorros, gatos, vasos de plantas ou bonecos. O que me importa são as mães solteiras, as crianças na fila de espera da adoção, a perseguição aos grupos subalternos e a constante ameaça da violência de Estado e do terrorismo de gênero.
Enquanto o mundo acaba, há pessoas que olham para dentro e se agarram no que podem, inclusive na alienação de que é possível viver o conto de fadas capitalista. Mas também há aquelas que olham para fora, para a necessidade de luta e enfrentamento ao domínio do capital, do fascismo, do sexismo, da misoginia.
Nesse dias das mães, deixo o meu abraço apertado a todas as pessoas que, por algum motivo qualquer, não podem ou não querem comemorar essa data. Espero com força que possamos transformar essa identidade em algo menos violento e opressor, que nasçam outros vínculos e formas de afeto e que a mternidade deixe de ser central nas nossas existências.