Começo o ano letivo já sendo engolida pelas demandas, mas ao mesmo tempo me recusando a sucumbir. Um corpo fragilizado é sempre empecilho para grandes revoluções, por isso lembro que é urgente ao menos manter a cabeça limpa, algo quase impossivel para uma pessimista ansiosa de carteirinha. Viver todas as distopias apocalípticas rende bons memes, porém na prática é meio assustador, por isso acredito que as pessoas têm escolhido se alienar mais e melhor.
Desde o início da pandemia eu tenho vivido de passados, os que vivenciei e os que gostaria de ter participado, invento outros finais, inclusive. Gosto desse exercício de criar um futuro do pretérito, título de livro excelente já usado pelo povo da história. Nesse jogo de esconde-esconde, tenho revisitado alguns lugares de pertencimento. A sala de aula, o bar, os trabalhos manuais, os livros.
Não sei qual foi a minha primeira leitura, a única certeza é a de que a alfabetização precoce me rendeu dois aniversários e um causo interessantíssimo a respeito de como minha família lida com cartórios datas de nascimento.
Da primeira infância, lembro da coleção do Cachorrinho Samba, cheguei a comprar para a prole, mas não teve adesão. Um dos que mais me marcou foi No reino perdido do Bebeléu, o orangotando e o desenho do beleléu com todas as coisas perdidas e escondidas por ali.
Pollyana e Pollyana moça, Mulherzinhas e As Mulherzinhas Crescem foram livros de formação. O jogo do contente nunca funcionou por aqui, só adulta fui entender que a gente faz o que pode do jeito que dá e, assim, me tornei tão Pollyana quanto a própria. Mas o que mais me marcou na personagem foi a imagem do filme de 1960, interpretado por Hayley Mills e seus longos cabelos loiros. Ali mora a primeira lembrança de querer ser outra pessoa, eu uma criança tomboy de cabelos curtos e óculos fundo de garrafa que, pouco depois, passou a sonhar em ser paquita.
Se Pollyana estava muito distante do meu micro universo feminino, Jo March era tudo o que eu poderia, talvez quem sabe, vir a ser. Forte e independente, encontra o seu lugar no universo dos livros e vai ao mundo para trilhar o seu próprio caminho. Minha Jo é June Allyson, do filme de 1949 e nunca me conformei por ela não ter casado com Teddy, talvez ali um prenúncio da minha própria história.
Invertendo um pouco essa relação entre livro e filme, E o vento levou e Scarlett não podem ficar de fora, mesmo que eu só tenha lido os livros na adolescência. Assisti ao filme aos 9 anos, passado em duas sessões com uma semana de intervalo, o que significa que chorei por duas semanas seguidas. Aquele pititico de gente com um pijaminha estampado sofrendo pelo destino de Scarlett, que perde o seu amado Ashley para a sem graça da Melanie, bem se vê que eu não sabia de nada, inocente.
“Jamais sentirei fome novamente” se tornou um mantra de superação, meio no sentido do potente “Não tolerarei” de Erica Hilton. Obviamente essas referências esmaecem na visão de mundo decolonial do século XXI, mas não se apagam.
Foi ali pelos 9, 10 anos que o universo da leitura realmente se descortinou, com A Aventura do Pudim de Natal de Agatha Christie. Lembro da capa dura, na edição do Círculo do livro e do encanto com aquele universo de mistério e investigação. Não sei de quem era o livro, na minha casa havia uma grande circulação de obras que vinham da minha mãe, da minha irmã e da minha tia. Alguns anos depois, eu já morava em Brasília, descobri que vendiam os livros de Agatha Christie em brochura na banquinha de jornal. Consegui quase completar a coleção toda, doada para a minha irmã numa das minhas últimas mudanças.
Na mesma época, passamos férias em São Francisco do Sul e visitamos uma parente da parente que tinha um gavetão de cômoda cheio de romances Júlia, Sabrina e Bianca. Li vários, revezando com minhas irmãs e minha mãe. Era apropriado para uma criança? Não, mas lá no século passado pouca coisa era, gosto de dizer que os anos 80 foram selvagens, os meus pelo menos, o que explica bastante porque sou desse jeitinho estapafúrdio.
Mas como nem tudo é desgraça nessa história, na mesma época comecei a ler os livros da coleção vagalume, esses sim direcionados para o público infantil, lidos por indicação da escola. Cem noites Tapuia, Açúcar amago, Éramos seis (triste que só a desgraça) são os que eu lembro de cabeça, além dos meu favoritos O caso da borboleta Atíria e O escaravelho do diabo. Memória afetiva forte.
Acho que o livro mais triste que li na infância foi Meu pé de laranja lima. Na época nós tínhamos uma ameixeira no quintal e eu amava aquela árvore e aquela casa e aquela infância que durou tão pouco. Chorei de soluçar lendo o livro e, séculos depois, vendo o filme. Li junto com o Tom quando ele tinha uns 8 anos e lá veio o choro compulsivo de novo, dessa vez não mais por um possível espelho mas pelo cunho social do abandono daquela criança. Tom assustado, sem entender nada, e eu lá aos prantos. Livros que crescem com a gente, temos.
Por fim, meu caminho pelo mundo das letras passou pela leitura da coleção Biblioteca das Moças, os tais romance-água-com-açúcar. Férias, eu uma pré-adolescente impúbere e sonhadora, ouvindo FM 104, Um dia de domingo com Gal e Tim rasgando o coração, virando dia e noite lendo um livro após o outro. Edições de brochura em capa verde, encapados com plástico de um rosa já amarelado, M Dely e a fórmula mais manjada de que o casal se conhece, se desgosta, passa o livro inteiro dando tudo errado, até que ficam juntos no final.
Durante a graduação descobri que existiam pesquisas acadêmicas acerca dessa literatura barata, o que abriu os caminhos para a minha pesquisa de mestrado. Mas essa já é outra história, fica para a próxima semana :)
Você, em texto, adiantando aquela tag que as pessoas estão fazendo agora no Instagram com as fotos mostrando o que liam quando criança, adolescente e adultos. Meu pé de Laranja Lima, nunca me recuperei.
Dá vontade de escrever, conversando com seu texto, você é minha musa inspiradora hahah 🫶🏼